terça-feira, 14 de dezembro de 2010

SILVIO SANTOS VEM DAÍ...


Ricardo Guilherme
ESPECIAL PARA O POVO

Camelô eletrônico, mágico e falastrão feito o nosso homem da cobra, Silvio Santos vem aí. Em seu programa de TV, aquela passarela que se projeta do palco e penetra a plateia compõe-se como uma rua, reminiscência das ruas onde a genealogia de sua persona persiste a evocar os ambulantes, as gestas da feira, o vaivém das praças, germe e cerne das cidades.
Silvio Santos vem daí: do ziguezigue no labirinto de veredas entre as barracas e da algazarra dos pregões, gênese do comércio que o animador transfigura em patuscada. Esse carioca paulistano, filho de um grego judeu com uma turca, descende de vira-mundos, andarilhos mercadores, de expressiva lábia. Sua arte deriva da fala, artimanha dos mascates; origina-se do rastro deixado pelas andanças desses povos emigrantes nos quais ressoa a voz dos escambos. E assim a histórica mala de seus antepassados torna-se o trans-histórico baú (da Felicidade), aberto não no sábado - dia de resguardo religioso para os seus ancestrais - mas no domingo, fazendo dos telespectadores também fregueses, expectadores de uma promessa ante a Porta da Esperança.
Silvio Santos advém daí: da memória de almocreves, da fluência e da espetacularidade dos nômades comerciantes, premidos pelo frio ou curtidos ao sol. Clown descolorido, de paletó e gravata, sem a maquiagem, os trejeitos e os habituais apliques e adereços da persona palhaço, o cognominado “Peru Falante” consegue, apenas pela entonação, gesticulação e domínio do ritmo de sua locução, equacionar a ciência da prototípica comicidade que ratifica a tradição advinda dos artistas de rua. Transforma as legendárias “macacas de auditório” em mercenárias colegas de trabalho que “topam tudo por dinheiro” e com essas neo-Macabéas contracena, em “pegadinhas”, como se fosse o tradicional escada, aquele comparsa que no picadeiro prepara a piada ou a gag em uma dupla cômica.
Silvio Santos provém daí: dos feirantes de São Paulo, essa babélica maloca que se fez capital do Nordeste. E porque também somos de uma “provincianópole”, podemos por atavismo nos identificar com ele e reconhecer que Silvio Santos vem daqui, pois Fortaleza, cidade de mar emigrada do sertão, surgiu ao derredor da antiga Feira Nova, atual Praça do Ferreira, e preserva – ainda que à revelia de si mesma – os resquícios das xepas e a cepa dos “galegos” que batiam de porta em porta tentando vender aos nossos avós as novidades de tecidos e joias a crediário de carnê e cadernetas.

Talvez por isso é que a esse tele-bodegueiro o nosso olhar se entregue. Porque temos na massa do sangue o DNA de quem, sem carteira de trabalho, negocia e apregoa bugigangas: Ei, dona menina, se achegue. Aqui tem de tudo um tanto, toda e qualquer quinquilharia. Vem, vem. E é só se for agora, porque se o Silvio Santos vem aí, o rapa também vem.

Ricardo Guilherme é escritor, teatrólogo e produtor de televisão. É também professor de Teatro da Universidade Federal do Ceará e criador do Teatro Radical.