quinta-feira, 14 de outubro de 2010

CONVERSA COM EDUARDO



Eduardo uma vez me disse
que as veias abertas sangram
e que sangram muito.

Sangram diariamente nas horas,
nas portas,
nos templos
e nas acareações públicas.

Sangram no suplício
do cotidiano das fábricas.
Sangram no olhar frio das armas,
no útero cancerígeno dos quartéis.

Sangram e pedem remorso
mesas brancas
danças negras
tanta saudade de Macondo
e dos curumins de minha casa.
Mas ainda não foi possível estancar.

Sangram no cais sem navios
nas meninas desvirginadas
no tédio dos almoços dominicais.
Sangram os negros boçais,
cortam os pulsos
e sangram de verdade.
Verdade que falta nos jornais
e nos casamentos arranjados.
Sangram a honestidade de filhos e pais.

Sangram na comida que é pouca
Sangram a roupa
o lençol
Sangram o sertão,
a cidade e as matas
Sangram São Francisco
te sangram por nada
por pílula nenhuma
que derrube a sede emanada.

Sangram minha oiticica,
meu martelo enferrujado,
casa de pau-a-pique,
meu celeiro, meu roçado.
Sangram a noite
quando os tiros deram trégua
Sangram infelizes
minha reza
meu apocalipse
galinha caipira foi quem mais sangrou.

Sangram a velha rabeca
encostada
quase falecendo
adoecida com um remendo
do tamanho da minha tristeza.
Sangram caríssima natureza
teu caule
e meu caule
tua folha
e minha flor
Sangram até o pensar
se até já sangraram o amor.

E sujo o sangue
pois são veias
ofende as palavras
mofando livros e poetas
que tanto lançaram pequenas agulhas
na vastidão de nossas colchas.

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