sexta-feira, 30 de setembro de 2016

SOBRE OS HOMENS E OS POEMAS

Foto: Celso Oliveira

Ao poeta Elias de França,
depois de bolinar prazerosamente suas Cantigas

Há quem diga que os homens
Nascem da terra barrenta
Feito flores
Ou que nascem do crepúsculo vermelho
Ao final do dia
Feito dalvas estrelas.

Ou até do óbvio parto dos mamíferos
Depois daquela agonia pela qual
Só as mães são capazes de resistir.

Tantos nascedouros têm o homem.
De tantas formas tem de eclodir
E vir ao mundo.
Mas o maior de todos os nascimentos
Talvez não venha da terra
Nem do céu
E muito menos da carne.
Não há maior desabrochar
E rasgar o véu da vida
Senão do nascimento pela palavra.

Surgir em poesia
Meter os pés pelas mãos
Numa revoada de idéias
Que nos atiram a um tempo que não é nosso
Porque a palavra não pertence ao tempo
Nem tampouco a lei nenhuma.
A palavra revela a alegria
De tudo que se deseja e se quer sentido.
Pois o sentido depende
De tudo que queremos amar e lutar.

Vai poeta, chama os amigos.
Convida-os a um bom copo de vinho
E festeja a tua palavra
Porque ela ama e quer viver.
Obrigado por ela.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

CATA-SONHOS


Foto: Ana Freire Fotografias


Imensamente triste
é o menino que olha para o rio
sem decifrá-lo
que em si mergulha
calado
como as pedras em seu caminho
soltas
sem destino
ao leve abraço abençoado das ondas.

Imensamente mansa
é a vigília sutil da noite
que te olha
e perturba
feito mãe que vela pelos filhos
desviando as desgraças
e consolando os dias.

Imensamente cândida
é a feiura sem remédio
hóstia consagrada e perfeita
que derrete em desejo
na boca da moça estrangeira
que mais parece
de barro e palha,
barro e sombra.

Imensamente violenta
é tua voz desordenada
que reza caboclos
e destrói cata-ventos
invocando milagres
e amores rebentados.
Imensamente enganoso
é o lugar sempre impróprio
de onde viemos
e onde estamos.
Um cata-sonhos
onde se faz morada
a chuva
o tempo
o riso.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

VAZIA LUNA



Vai Antônio
Deita e dorme
No cimento frio de terceira
Da frieira
E te aquece com a ordem do teu sono.

Te guarda
Neste quarto de chão.
Quadrado sem parede,
Sem teto e sem rede.
Calçado de milady
Que pisa no teu travesseiro,
No teu quarto de amor.

Esquece as estrelas
Pois não olham mais por ti.
Marquises são paisagens
No teu salão de beleza
E nem a lua mais é cheia.
A lua é vazia,
Vazia luna,
Vasilha durma.

Somente lembras do teu terço
Que apegado em cócoras
apavorado rezas
Para amaciar o berço
e bebe
o sebo da noite a mil
tão incerta.

Foto: Galba Nogueira Francisco

terça-feira, 23 de agosto de 2016

A FLOR DA BOCA


Se a boca é frouxa
ri
desmantela a língua
morde a míngua
espanca a fala
florbela poesia.

Se a louca é linda
eterna loucura canto.
O canto sai da voz
e voz sai do canto
da boca surpresa
o beijo arredonda o mundo
que no fundo
a garganta alegra
nobre
mendigo
donzela.
E de viva, rouca,
devolve o canto à boca
o prazer da poesia dela.

Canção com Lenine Rodrigues

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

CARNE E OFICINA



Homens
de dentes perfeitos
imperfeitos
mais que perfeitos
mastigam 
salivam
ruminam o musgo
e o alcatrão.
Do luxo nasce a podridão
do entulho
barulho
orgulho
de não morrer agonizando
na vala
na sala
à tarde vendo televisão.

Homens
de baço operado
cortado
reduzido
feito bicho parido
no caldo quente da favela
moela 
galinha
prostituta ossuda
que desmantela meu peito
e se tudo é desfeito
vai lavar roupa "nas canela".

Homens
de bruto aos montes
sua feito aguaceira
ribanceira
esperneia
que nem menina nova
morta
santa
partes que te parto tanta
implora
conjura
copula com o diabo, filha!

Homens
braços dados ao céu
cruzados braços
mausoléu
tão fraca é tua vida
fadiga
mendiga
como são teus dentes
sujeitos
perfeitos
mais que refeitos.

Foto: Galba Nogueira Francisco

terça-feira, 16 de agosto de 2016

SERIEMAS E CABAÇAS



Carrega negro
O peso que te batem às costas.
Paus e pedras te arrastam às portas do palácio.
Fazem de ti carregador de mundos,
Objeto de muita valia,
Ferramenta viva e obra-prima.

Carrega negro
Estandartes de fogo.
Milícias inteiras te esperam
E multidões te querem rei,
Sacerdote e bufão.
Carrega negro
A honra indomável,
Tua lua e tua aorta inquebrável.
Faz agora tuas piadas
E destrói os calcanhares que forçado tu lavaste.

Carrega negro
Todas as embarcações clandestinas,
Todas as crianças violentadas à proa
E todos os sonhos que sepultaste no mar.
Traz sobre teus ombros a força e a destreza
Que tentaram te furtar.
Enrijece os nervos e canta!

Canta tua arte milenar e teus malabares.
Canta perfeito como perfeito é teu corpo.
Canta e anda negro.
Carrega negro
Tua cana, teu café e teu ouro.
Mistura à farinha os signos mouros,
Desordena as raças
E depõe contra os estetas.
Carrega entre os laranjais tua coragem
Maneja flores e facões
Sobre toda conformidade.
Costura tua barba a esse céu estrelado.
Faz quilombos na avenida central.

Carrega negro
Tua voz aguerrida,
Teu espanto e tua filosofia imortal.
Faz-te camaleão,
Centurião transcendental.
Carrega negro
Teu ferro em brasa
Que queima e forja
A poesia inquieta dos cativeiros vazios.
Carrega negro
Agora somente o que podes levar:
Seriemas e cabaças.
Sem que nada te pese.
Sem que nada te faça cansar.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

CORAÇÕES DE PESCADORES


Meu ancoradouro está triste.
Nele não repousam mais navios
As jangadas não mais se recolhem,
Nem as aves do céu escarlate
Teimam seus cortejos
Nos mastros de minha vanguarda.

Os ventos salgados
Sopram nos recifes
Uma lamúria indecifrável,
Onde solitárias mulheres
Vagam pela praia
A lamentar seu desterro
E sua espera.

Tantas redes guardadas
Tarrafas encaixotadas
Reclamam por seus senhores.
Evocam cantigas de saudade
Que silenciam
A marcha inevitável das marés.

Não há mais peixes no mar
E todos os braços fortes
Forjados em bronze solar
Agora repousam de sua lida
Junto de suas naus intrépidas
Sob o espírito das águas.

Embarcações de filhos amados
Levados feitos missionários,
Em cruzadas de um mesmo sonho.
Alimento de gerações.
Corações de pescadores
Que escutam ao longe
Como que em oração
As serenas vozes de suas mulheres,
A pedir em verso
Que o mar se abra
E as devolvam aos dias da felicidade.

Foto: Galba Nogueira
Local: Enseada do Mucuripe/Fortaleza/CE

domingo, 7 de agosto de 2016

MARIA DA PENHA...MARIA DE LUTAS...



Não, não corte meus cabelos
Eles são meus e somente meus.
Não me toque e nem grite aos meus ouvidos
sua herança de macho, seu mau amor...
Não me prenda e nem me esconda
embaixo do teu abraço obscuro
e do teu medo patriarcal.

Não, não sou sua...
sou das mariposas da minha vontade
minhas asas são pintadas de coragem
e liberdade
que ninguém pode ferir ou arrancar...

Aos 10 anos da Lei Maria da Penha e as Lutas diárias por um mundo mais justo e gentil!

sexta-feira, 5 de agosto de 2016


Sob a íris dela
vi meu vale inundado,
sertões verdejantes

e flores novas que brotavam da terra
feito crianças...

Sob seus olhos
vi estrelas a bailar
na linha reta do Apodi,
vi vaqueiros a cavalgar
pela caatinga inexplorada
que vive em mim...


Foto: Albert Alan

Olho, íris e encanto: Ana Freire

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

CULPADO

Não culpe a poesia
pelo nosso mau poema
nem bata no fonema
ou na rima inadequada.
Não foi a lírica mal tratada
que acabou com nosso amor.

Se o verso não deu certo
bote a culpa na amargura,
na inspiração mais feia e dura
do coração do escritor.

Não fale mal de Manoel,
de Drummond ou Patativa,
nem Pessoa ou Bandeira
me ensinaram ser ruim.
Não olhe atravessado
ou dê rasteira
quem com os versos fez do mundo
o lugar melhor de mim.

Não mande prender
Meu Bilac ou Camões,
quem não souber encantar,
Fui, mais ninguém,
a letra das tuas canções.

27 de julho de 2016